Olhos d'água, de Conceição Evaristo
Quem é Conceição Evaristo?
Conceição Evaristo é uma
importante escritora e intelectual brasileira, reconhecida por sua obra que
aborda temas como racismo, pobreza, gênero e a experiência das mulheres negras
no Brasil. Sua produção literária, marcada pelo realismo social e pela denúncia
das injustiças sofridas pela população negra, é admirada pela profundidade e
sensibilidade.
Nascida em 29 de novembro de
1946, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Evaristo cresceu em uma favela e
enfrentou desafios ao conciliar trabalho doméstico e estudos. Mudou-se para o
Rio de Janeiro em 1973, onde graduou-se em Letras na UFRJ e obteve mestrado e
doutorado em Literatura. Antes de se tornar escritora, atuou como professora e
militante do movimento negro, especialmente em questões que envolvem as
mulheres negras.
Em 2018, foi candidata à Academia
Brasileira de Letras, levantando debates sobre inclusão e representatividade,
embora não tenha sido eleita. Reconhecida com vários prêmios, sua escrita
continua a inspirar novas gerações de escritores e intelectuais negros.
Sobre o contexto histórico e
social:
"Olhos d'Água" é um
espelho das complexas condições sociais do Brasil contemporâneo, marcado pela
desigualdade racial, exclusão social e violência, especialmente contra a
população negra e pobre. Conceição Evaristo utiliza suas narrativas para expor
as feridas abertas de uma sociedade profundamente marcada pelo racismo
estrutural e pela opressão de gênero, ao mesmo tempo em que celebra a
resistência, a memória ancestral e a humanidade dos personagens que lutam para
sobreviver em meio às adversidades.
Sobre o livro:
"Olhos d'Água" (2014),
de Conceição Evaristo, é uma coletânea de contos que retrata a vida de
personagens negros e periféricos, com foco em suas dores, resistências e
memórias. A obra, composta por 15 contos, tem como ponto central as
experiências de vida de pessoas marginalizadas pela sociedade, com destaque
para as mulheres negras, suas histórias de luta, sobrevivência e resiliência.
Os contos de "Olhos
d'Água" não seguem uma única linha narrativa, mas estão interligados por
temas como racismo, desigualdade social, violência, ancestralidade e
resistência. Evaristo explora as diversas facetas da experiência humana através
de uma escrita sensível, baseada na sua própria vivência e na de outros que
compartilham as dores e as alegrias da escrevivência — termo que ela cunhou
para descrever a sua forma de narrar a realidade a partir das experiências
negras. Cada conto traz personagens que lidam com perdas, exclusão e racismo,
mas também com afeto, memórias e solidariedade. As histórias abordam questões
sociais profundas, sempre com um olhar voltado para a condição de quem vive à
margem da sociedade.
Sobre alguns contos principais:
1. "Olhos d'Água"
O conto que dá título à coletânea
apresenta uma mulher idosa que reflete sobre as dores e as perdas que a vida
lhe impôs, enquanto olha para uma foto do filho, falecido prematuramente. O
conto é uma meditação sobre o sofrimento causado pela exclusão e a violência,
mas também sobre a profundidade dos laços afetivos. A imagem dos olhos d'água,
que remete tanto às lágrimas quanto à memória ancestral, simboliza o peso das
histórias não contadas e as cicatrizes invisíveis que marcam a trajetória da
protagonista.
As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar a comida (p.16).
2. "Duzu-Querença"
Esse conto narra a história de
Duzu-Querença, uma mulher que, após sofrer com a violência e a opressão,
encontra um modo de se vingar daqueles que a machucaram. O conto aborda a
condição feminina em um contexto de pobreza e opressão, onde a protagonista
busca formas de resistir e afirmar sua identidade e sua dignidade.
Se as pernas não andam, é preciso ter asas para voar (p. 32).
3. "Maria"
"Maria" conta a
história de uma mulher trabalhadora, mãe de quatro filhos, que luta para
sustentar a família em meio à pobreza e à violência urbana. Em um ambiente de
extrema dureza, ela encontra forças para viver por meio do amor que sente pelos
filhos, embora sua trajetória seja marcada pela solidão e pelo esquecimento de
suas próprias necessidades e sonhos.
Ele estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida. De buraco-saudade no peito dele... (p. 41).
4. "Ana Davenga"
Esse conto apresenta uma mulher
que, após muitas desilusões e sofrimentos, decide não mais ser passiva diante
da violência que a oprime. Ana representa a resistência feminina frente à
opressão masculina e social, recusando-se a continuar uma vida de submissão. A
história de Ana é um grito contra o silêncio imposto às mulheres, especialmente
às mulheres negras.
O que ele gostava mesmo era de ver o medo, o temor, o pavor nas feições e modos das pessoas (p. 24).
5. "Lumbiá"
O conto fala sobre um homem que,
ao se encontrar com uma mulher que carrega uma cruz de madeira, é confrontado
com memórias dolorosas do seu passado. A história lida com temas como a culpa,
o remorso e o perdão, explorando como as escolhas feitas no passado podem ter
consequências duradouras nas vidas de seus personagens.
Da imagem-mulher que era a mãe, da imagem-homem que era o pai. A casinha simples e a caminha de palha do Deus-menino, pobre; só faltava ser negro como ele (p. 84).
Sobre o tema:
Os contos mostram como o racismo
e a desigualdade social afetam profundamente a vida dos personagens, seja na
forma de violência direta, como no caso da morte de jovens negros pela polícia,
seja na forma de pobreza, falta de oportunidades e invisibilidade. A violência
é uma presença constante na vida dos personagens de Evaristo, manifestando-se
em diferentes formas: violência física, violência simbólica, violência
psicológica e violência estrutural. Apesar de serem marcados por inúmeras
adversidades, os personagens encontram maneiras de resistir e sobreviver. A
memória ancestral e os laços afetivos são fundamentais para essa resistência. A
solidão das personagens, especialmente das mulheres, aparece em várias
histórias, mas o afeto — seja na forma de amor materno, de amizade ou de
relações amorosas — é também um ponto central que lhes permite continuar. Conceição
Evaristo usa sua escrita para contar histórias de vida que geralmente não são
ouvidas. As narrativas de "Olhos d'Água" são uma forma de escrever a
partir da experiência de ser negro e pobre no Brasil, um testemunho da dor, mas
também da força e da humanidade dessas personagens.
“Nossa escrevivência não pode
ser lida como histórias para ‘ninar os da casa-grande’, e sim para incomodar,
cutucar feridas que existem há séculos, mas que são cuidadosamente escondidas.
Nossa escrita é memória e verdade.”
A escrevivência é o
conceito-chave que define a estética e o propósito da escrita de Conceição
Evaristo. Não é apenas uma escrita sobre vivências, mas uma escrita que surge
da própria experiência de vida, principalmente das experiências das mulheres
negras e da população marginalizada. Evaristo acredita que a escrita tem o
poder de resgatar memórias e dar voz aos silenciados. A obra carrega a
autenticidade de quem viveu e conhece as dores e lutas que narra. Assim, o
texto não é apenas ficção, mas uma espécie de testemunho, em que vida e
literatura se misturam.
Conceição Evaristo usa uma
linguagem que, embora simples e acessível, é profundamente poética e
metafórica. Ela consegue transformar realidades duras, como a pobreza e a violência,
em imagens carregadas de significado. O uso de metáforas e símbolos é
recorrente, sendo a água um dos principais símbolos da coletânea. A água
aparece frequentemente como representação das lágrimas, da memória, da vida e
da ancestralidade, criando um elo entre os sentimentos mais íntimos das
personagens e suas histórias de vida. Exemplo disso é o título do livro,
"Olhos d'Água", que sugere as lágrimas como fonte de vida, memória e
dor. A água é ao mesmo tempo símbolo de tristeza e de purificação, remetendo à
conexão com as raízes africanas e à fluidez das experiências humanas.
A obra de Evaristo muitas vezes apresenta narrativas fragmentadas, em que a história é contada a partir de pequenas memórias, saltos temporais ou vozes internas dos personagens. Não há um começo, meio e fim tradicionais; em vez disso, as narrativas são costuradas como fragmentos de vida, retratando a complexidade das existências humanas. Esse estilo fragmentado dá à obra um caráter mais intimista, como se os personagens estivessem compartilhando partes de suas memórias e sentimentos diretamente com o leitor. Há uma proximidade, uma confissão, onde o leitor é convidado a testemunhar essas experiências.
A escrita de Conceição Evaristo carrega marcas fortes da oralidade, uma característica essencial na literatura afro-brasileira. A fala, o tom das personagens, as histórias que elas contam e os diálogos são permeados por expressões que remetem à oralidade típica da periferia e da cultura popular. Essa oralidade contribui para a criação de um texto mais fluido e próximo da linguagem do cotidiano, aproximando a escrita de Evaristo das histórias contadas por mulheres negras em ambientes familiares ou comunitários. A oralidade também se conecta com a ancestralidade africana, onde a transmissão oral de histórias, memórias e saberes tem um papel fundamental. As personagens de Evaristo carregam essa tradição de contar e ouvir histórias, reforçando o vínculo entre o passado e o presente.
Em "Olhos d'Água", os personagens principais são quase sempre pessoas negras, pobres e marginalizadas, especialmente mulheres. No entanto, o foco não é apenas nas dificuldades e violências que elas enfrentam. Evaristo humaniza profundamente essas figuras, dando-lhes voz, sentimentos, complexidade emocional e dignidade. Mesmo diante da violência e opressão, as personagens de Evaristo demonstram uma profunda resiliência. São seres humanos plenos, com sonhos, desejos e medos, que lutam para sobreviver e manter sua identidade em um contexto de exclusão social e racismo. As personagens femininas são, muitas vezes, mães ou filhas, e os laços familiares desempenham um papel importante. As relações familiares, especialmente entre mães e filhos, são retratadas com delicadeza e profundidade, mostrando o peso da responsabilidade e do amor nesses contextos adversos.
Conceição Evaristo explora as diversas formas de opressão enfrentadas pela população negra no Brasil, como o racismo, a pobreza e a violência, tanto física quanto simbólica. Essa denúncia é sutil, permeada pelo cotidiano dos personagens, mas ao mesmo tempo poderosa, pois evidencia as estruturas que perpetuam a exclusão. A violência policial, a falta de oportunidades e a solidão da mulher negra são temas recorrentes que reforçam essa denúncia, mostrando o quanto essas questões são estruturais e profundamente enraizadas na sociedade brasileira.
A obra é rica em simbolismos culturais, especialmente relacionados à herança africana. Elementos como a ancestralidade, a religiosidade afro-brasileira e a memória dos antepassados permeiam as histórias, conferindo um caráter místico e espiritual à narrativa. O conceito de ancestralidade é central, pois as personagens não estão desconectadas de suas raízes africanas. Essa conexão com o passado é um elemento que fortalece a identidade e dá sentido à resistência das personagens diante das adversidades.
Apesar de abordar temas como racismo, violência, exclusão e pobreza, Conceição Evaristo consegue tratar dessas questões com uma incrível sensibilidade poética. A dor e o sofrimento das personagens são apresentados de maneira tocante e reflexiva, sem cair em descrições cruas ou meramente expositivas. A autora equilibra a denúncia social com uma abordagem lírica, o que torna sua escrita delicada e ao mesmo tempo contundente.
Sobre a escola literária:
Conceição Evaristo não se limita
a uma escola literária tradicional, mas dialoga com a literatura
afro-brasileira, a literatura marginal e o pós-modernismo. Seu estilo é
definido pelo conceito de escrevivência, que se baseia nas experiências de
mulheres negras e pessoas marginalizadas, trazendo uma nova abordagem literária
em que vida, memória e resistência são fundamentais.
A obra de Evaristo, especialmente
em "Olhos d'Água", incorpora características do pós-modernismo, como
a fragmentação e a multiplicidade de vozes. A desconstrução da narrativa linear
e a mistura de tempos e estilos refletem a complexidade da realidade dos
personagens, destacando a diversidade de perspectivas em um contexto de
desigualdade e opressão. Além disso, a interação entre oralidade e escrita é
uma característica pós-moderna que rompe com os limites dos gêneros literários.
Embora não esteja diretamente
ligada ao Realismo do século XIX, Evaristo compartilha um olhar crítico sobre
as condições sociais e as dificuldades de grupos marginalizados, semelhante à
visão do Realismo. Em "Olhos d'Água", ela aborda temas como
sofrimento humano, racismo, pobreza e violência, revelando as contradições da
sociedade brasileira. Sua escrita expõe o cotidiano de seus personagens de
forma honesta, sem idealizações, revelando uma realidade tanto brutal quanto
poética.
Sobre a mensagem da obra:
Uma das mensagens centrais de
"Olhos d'Água" é a denúncia do racismo estrutural e da desigualdade
social no Brasil. Conceição Evaristo expõe como o racismo afeta a vida das
personagens através da pobreza, violência e exclusão, colocando-as em situações
de vulnerabilidade. A obra critica a sociedade que perpetua essas
desigualdades, abordando a violência física e simbólica contra a população
negra.
Outro aspecto importante é o
resgate da memória e da ancestralidade africana, que conecta o presente ao
passado. As personagens carregam a força de seus antepassados, e essa ligação
com suas raízes proporciona resiliência e identidade. O simbolismo da água
representa a continuidade e resistência ao longo do tempo.
A resistência feminina,
especialmente das mulheres negras, é um tema central. As personagens são
retratadas como fortes e ativas, enfrentando a dupla opressão do racismo e do
machismo. Mesmo em situações difíceis, mantêm sua dignidade e solidariedade,
encontrando formas de resistência através da maternidade, trabalho e relações
entre elas.
Evaristo também aborda a
invisibilidade e desumanização das pessoas marginalizadas, usando sua escrita
para dar visibilidade às suas histórias, humanizando-as e revelando suas
complexidades. Apesar dos temas pesados, o afeto — seja o amor materno, amizade
ou desejo romântico — emerge como uma força vital que ajuda os personagens a
resistirem ao sofrimento.
A escrita de Evaristo, baseada no
conceito de escrevivência, é uma forma de resistência e transformação. Ao
narrar histórias de vivências próprias e de outros, ela desafia a
invisibilidade e dá voz às populações marginalizadas, preservando experiências
que refletem tanto a dor quanto a força e a luta da comunidade negra. Essa
abordagem transforma a dor em potência, oferecendo uma nova perspectiva sobre
as vidas silenciadas.
Sobre o desfecho:
O desfecho de "Olhos
d'Água", de Conceição Evaristo, não apresenta uma conclusão única ou
fechada, pois o livro é composto por contos independentes, cada um com seu
próprio encerramento. O tema central é a resistência e a sobrevivência dos
personagens, que, apesar de enfrentarem perdas, dores e violências, continuam
vivendo. A sobrevivência, mesmo marcada pelo sofrimento, é um ato de
resistência.
Um exemplo disso é o conto que dá
nome ao livro, onde uma mãe, após a perda do filho, reflete sobre suas memórias
e dores, simbolizadas pelas lágrimas. A memória é uma força motriz para muitos
personagens, ligando-os à ancestralidade e oferecendo um ponto de apoio para
seguir adiante, mesmo sem uma "solução final" para as injustiças
enfrentadas.
Os finais dos contos são muitas
vezes abertos ou incompletos, convidando o leitor a refletir sobre as vidas das
personagens e a realidade de exclusão e opressão que elas enfrentam. Conceição
Evaristo nos deixa inquietos, destacando a necessidade de mudanças estruturais
na sociedade, sem entregar "finais felizes" fáceis. Embora a dor seja
constante, há sinais de esperança. A água, recorrente nas histórias, simboliza
tanto o sofrimento (lágrimas) quanto a purificação e o renascimento, sugerindo
a possibilidade de renovação. O equilíbrio entre realismo e esperança nos
lembra que, apesar da brutalidade da vida, os personagens seguem lutando.
Assim, o desfecho da obra não
resolve uma trama linear, mas convida à reflexão sobre as condições de vida das
personagens marginalizadas. A dignidade, a resiliência e o poder da memória são
temas centrais, e a própria narração dessas histórias é vista como um ato de
resistência.
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